sexta-feira, 28 de março de 2014

"Oceano"

Podes sentir as ondas quebrando ao longe? Podes ouvir o rugido do mar profundo? Sua canção fantasmagórica soando na noite que se cerra sobre nós? Feche seus olhos, preste atenção... há algo que canta para ti. Uma voz doce e quente, como os dias agradáveis e sonolentos de verão, onde você dorme preguiçosamente no meio do dia. Mas, espere!, não sorria assim... não percebes?, há também uma sensação estranha que acompanha algumas notas da melodia; algo que cai como gotas de chuva em um amanhecer de inverno, enregelando seus ossos e te fazendo desejar estar em seu lar novamente, sem que você se lembre do motivo que o tirou de láOuça com atenção... 
Sim, o que você ouve é o coração do oceano, o espírito do mar, que seduziu e enlouqueceu marinheiros sem conta, levando-os a fins cruéis ou sutis em histórias há muito perdidas ou esquecidas. 
Há algo ali, meu amigo. Escute o que lhe diz este velho. Há muito mais nas coisas do que você pode imaginar e, quando falamos do Mar... bem... com certeza há nele muito mais do que poderíamos desejar... 
Sabe?, quando eu era jovem, jovem assim como sois agora - ora, não me olhe com esta cara! - meu pai contava-me um conto, uma história que o Tempo lhe contou quando este ainda era jovem... um conto sobre o Mar. 
Houve uma garota. Sim, sempre há, não é mesmo? Uma garota bonita e meiga? Sim, e o que seria mais provável em histórias deste tipo? Exato! Mas, bem, esta não é uma história de amor comum. Não como você pode esperar, pelo menos. Ela começa - ou termina - em uma noite exatamente como esta, em uma praia muito parecida com esta, há muito, muito tempo. 
O céu está chumbo e, embora seja lua-cheia, o único sinal de que existe uma lua é uma leve claridade em meio às nuvens escuras. O mar está calmo, sem ondas, só o silêncio de sua canção preenche a noite. É outono, e um vento muito frio varre a costa, no entanto, ela não sente frio; está parada em pé na areia cinza, somente com seu longo vestido, branco feito as estrelas. Ela contempla o oceano com seus grandes olhos, translúcidos de tão claros, como a água do rio mais límpido. Seu tom acinzentado parece capturar o espírito da noite. O vento brinca com seus cabelos, negros como a noite, como se com ela flertasse timidamente. Ela ouve o rugido do Mar ao longe, como se cantasse para ela uma canção há muito esquecida. Há algo de familiar e acolhedor em sua melodia e ela se move lentamente em direção ao mar, quase que inconscientemente. Seus pés descalços abandonando suaves pegadas na areia fina. 
Lentamente ele segue em frente. O olhar pousado no horizonte e, quando se dá conta de si, a água já banha os seus pés. Não está fria como você poderia imaginar que estivesse em uma noite gélida dessas, não para aquela garota pelo menos. Não, para ela a água do mar lhe chega morna e sonolenta. Ela olha para o vasto oceano à sua frente, como se lhe dirigisse uma pergunta, ou esperasse uma resposta. Ela o acha belo. Sempre achara. A água morna parece um convite, como alguém que lhe estende a mão para se aproximar do fogo e se livrar do frio. Decide seguir mais um pouco, que mal há nisso? Só mais um pouco. 
A água cobre seus tornozelos, molhando a barra de seu longo vestido. Ela segue. Passa a ponta dos dedos pela superfície da água. Seu vestido, que antes flutuava, começa a afundar devido ao peso. Mas não é um peso tão grande, não... Não o suficiente para ela não conseguir mais andar, nada que a faça parar. 
Em frente ela vai. Seus longos cabelos deslizando sobre as águas. Aos poucos ela afunda, sem nadar. Apenas segue. Apenas se entrega, afinal, não há o que temer. O Oceano é tão belo, e parece recebê-la com tanta ternura; ela a envolve e a protege, cantando em seus ouvidos feito um pai que nina o filho nos braços. A sensação é de estar em casa, de voltar ao lar, de onde nunca deveria ter saído. 
Ninguém sabe dizer quem foi ela ao certo. Alguns dizem que ela perdeu seu amor para o mar, e que este um dia voltou para buscá-la, outros, que ela na verdade rendeu seu amor ao Oceano e se entregou a ele de corpo e alma; ou ainda que sempre pertenceu ao Mar de alguma forma, e sempre desejou voltar para casa. 
Você vai me perguntar se ela se matou, se tinha uma vida triste e simplesmente decidiu ir embora. Podes pensar assim se quiser: as pessoas fazem isso, de fato... mas se perguntar a este velho que vos fala ele vai te responder que não. 
Não, ela não se matou. E arrisco dizer que nem ao menos morreu. O Mundo é um lugar muito estranho, sabe? Muito mais estranho do que gostaríamos de aceitar, e muito mais estranho do que as pessoas costumam pensar. Eu já vi muita coisa deste Mundo, sabe? Ela vive lá... de alguma forma... no meio das ondas... guiando marinheiros para os seus lares ou fazendo-os enlouquecer de amor. Ela está lá, cantando sua canção... 
Sabe?, se você sentar quieto na beira do Mar em uma noite fria de Outono como esta, você pode ouvir sua voz cantando para ti uma bela canção de ninar... 
...ou uma assustadora canção de amor.  
Você pode sentir a mão dela em seus cabelos, acariciando sua pele? Preste atenção... você a ouve? Você sente o arrepio na espinha que a voz dela lhe causa?, ou o frio no peito que o seu toque lhe traz?  
O que? ...eu? 
Ah, sim... 
Sim, pelos deuses... 
Pelos deuses do Céu e do Mar... 
...eu a ouço. E se... 
...se os ventos vierem a me trair, 
um dia hei de vê-la.