Primeiro
a luz.
Depois, o som.
Som que explode ao longe, fazendo o
velho saltar em sua macia cadeira perto do fogo. Ele solta o livro que estivera lendo e
aproxima-se da grande janela, as pesadas cortinas vermelhas dançando ao sabor
do vento, feito língua de répteis famintos. Ele olha pela janela, sentindo os
primeiros pingos de chuva em sua pele. Ao fechá-la, finda-se o barulho e o
balançar das cortinas. Os répteis estão mortos.
Através do vidro ele pode ver a chuva
se aproximando sobre a velha floresta, com seus pinheiros sacolejando como o
mar, e aos poucos se aproximar de sua janela, os pingos pipocando aos poucos
contra o vidro e escorrendo lentamente. Ele fecha as cortinas com um movimento
lento, mas algo impede sua mão. Seria um pressentimento? Alguma paranóia? O que
significa esse calafrio na espinha? Há algo estranho no balançar dos pinheiros,
longe na noite escura banhada pela chuva... ou é só maluquice de um velho? Um
roçar em sua perna causa um sobressalto. Ele olha para baixo e encontra seu
velho companheiro. O gato. Tibles. Dá de ombros e fecha a cortina de vez. Não sem
antes dar uma última espiada pela cortina.
Ele volta para perto da lareira. O
fogo morre aos poucos. Ele seleciona um pedaço aleatório de lenha e arremessa-o
nas brasas, que chiam e se espalham pelo ar antes que o fogo ganhe uma nova
sobrevida.
O gato mia. O velho fecha o livro que
antes estivera lendo, apanha seu lampião e desce as escadas o mais rápido que
seus músculos cansados permitem. Tibles passa por ele, quase derrubando-o das
escadas, e espera no patamar lá em baixo.
– Calma, meu caro! Já estou indo.
Após descer as escadas, ele se dirige
para a cozinha. Passando pela janela da sala, algo chama sua atenção. Uma sombra
incomum do lado de fora. Há algo de estranho nesta noite, nesta tempestade.
Tibles está parado no meio da sala. Fitando a janela. O velho segue em direção
à porta, e se certifica de que está fechada. A sombra permanece ali. Talvez seja
só uma árvore. Uma árvore alta no meio de árvores altas. Faz muito sentido afinal
de contas. É só a noite te pregando peças. Somente seus olhos tentando entender
as coisas. Mesmo assim, ele tranca a porta e a janela.
Tibles permanece sentado no meio da
sala até que o velho já tenha alcançado a soleira da cozinha, então, com um
ronronar, segue-o até lá e pára ao lado de sua vasilha. O homem derrama leite
aos poucos e o gato começa a beber, lentamente.
Ele se senta ao balcão e decide que
também precisa de um lanche antes de ir dormir. Passa então a montar
vagarosamente um sanduíche e a preparar um café. Já está na segunda mordida e
no meio do primeiro gole do café quando ouve um estalar vindo da sala. Ele pára
no meio do gole, levando a caneca vagarosamente ao tampo do balcão. Tibles ergue
as orelhas e espicha a calda. Atento. Ele se levanta de vagar e segue em
direção à sala, com seu velho lampião na mão que treme. Ao chegar à sala, nada.
“Devo estar ficando louco”... ao se
virar para voltar ao seu lanche, Tibles começa a rosnar. De repente algo. Algo em
sua visão periférica enquanto ele observar o gato. Uma sombra. Rápido. Somente uma
fração de segundo e se foi. Mas é o suficiente. Tibles sai correndo e sobe as
escadas. Ele decide que é melhor acompanhar o gato andar acima. Suas mãos
tremem, seus ouvidos zunem. Ele sobe o mais rápido que pode. Um frio pavor começa
a se apoderar de seu corpo, algo que ele nunca sentiu na vida, algo do qual
nunca ouvira falar. Algo lá fora.
Ele se tranca no quarto e se encolhe
num canto feito uma criança assustada. A chuva tamborila forte nas janelas. O fogo
na lareira morre. Tibles está encolhido debaixo da cama e ele pode ouvir o
ranger dos próprios dentes. O relógio na sala soa lentamente o seu pêndulo. Tic... toc... tic... toc... mais lento
que o seu batimento cardíaco. Ele treme. Frio. Um frio sobrenatural. Puxa as
cobertas da cama, e se enrola o melhor que pode, mas isso não ajuda.
Ele sente mais do que ouve... a porta
da sala... abrindo lentamente... algo rastejando para dentro... a noite
entrando em seu abrigo. O fogo em sua lareira, cada vez mais fraco. Silêncio. Somente
o barulho de seu coração acelerado. O relógio não soa mais... em vez disso,
algo pior... um som suave... lento. Cada vez mais próximo. Subindo as escadas.
Pára. Tibles rosna sob a cama. Está ali. Do outro lado da porta. Aquilo. Vindo de
fora. Ele não tem mais controle de seu corpo, o frio é tão profundo que ele
treme convulsivamente.
O trinco na porta. Há algo errado com
ele. Ele gira suavemente. De repente um estalar. Ele geme silenciosamente. O ranger
da porta ao se abrir acompanha o gelo em sua espinha.
A porta se abre vagarosamente. Ele está
paralisado. Não pode se mover, não pode fugir, não pode gritar, até mesmo isso
é reprimido. Por Aquilo. Ali. Na porta. A Noite Que Entra. O Vindo de Fora. Ele
O vê. E não compreende. Aquela escuridão que entra vagarosamente, apagando sua
luz. Não. Aquilo não é possível. Um temor ancestral e frio toma conta de seu
corpo. Paralisante. E então ele o vê como ele realmente é.
Inconcebível.
Inimaginável.
O derradeiro impulso de seu
cérebro é finalmente processado.
Ele grita.
Mas o som só pode ter vindo do
fundo de sua alma imortal.
Pois seu cérebro desistira de
entender.