segunda-feira, 7 de abril de 2014

"Um trem para o Oeste"

A locomotiva segue sacolejando suavemente pelos trilhos. É noite, a maioria das luzes nos corredores e nas cabines está apagada, à exceção de uma ou outra lâmpada à gás que balança suavemente, feito um pêndulo no meio do longo corredor, alongando as sombras e aprofundando a escuridão. As portas das cabines estão todas fechadas, e não há barulho algum, a não ser o do próprio trem, que segue seu caminho. Não há paradas, não há estações onde pessoas embarcam. Ele não se lembra exatamente como chegou ali. Encolhido em uma larga poltrona de veludo vermelho que poderia abrigar três pessoas, ele busca alguma referência pela janela. Mas isso de nada lhe vale. Está muito escuro lá fora, chove, e o vapor de seu corpo nublou a janela. Constantemente ele passa a manga de seu casaco pelo vidro, sem desistir de buscar algo na imensidão que se move lá fora. Ele sabe que se move, pois o trem sacoleja, e a lâmpada em sua cabine acompanha o movimento. Não há ninguém na poltrona da frente; ele está só. Seus pés estão apoiados em sua poltrona, junto ao peito, e ele segura os joelhos com um abraço apertado, que só desfaz para limpar a janela novamente. 
         Ele se sente estranho. A simples ideia de tocar o chão com os pés o assusta. Ele olha para o chão pelo vidro, depois de tê-lo limpado mais uma vez, vê os pedriscos se movendo próximos à locomotiva. Rápido. Então está mesmo indo para algum lugar, mas para onde? Seria um sonho? Ele não se lembra de como chegou ali, não se lembra de ter comprado nenhuma passagem, nem de ter que viajar... Qual é a última coisa que se lembra? Seria amnésia? Ele não se lembra de seu nome. Se sente perdido. A chuva aperta lá fora. Ele ouve o tamborilar monótono e sonolento das gotas nas janelas. Respira fundo o ar frio e toma uma decisão. Levanta-se. Ao olhar o bagageiro acima de sua poltrona encontra uma pasta. Ele a pega e senta-se. Não há mais ninguém no vagão, então a pasta só pode pertencer a ele, certo? Ele olha ao redor, como que para se certificar de que não há mesmo mais ninguém. Volta-se para a pasta de couro. Está fechada. O fecho está emperrado ou algo assim. Ele não consegue abrir. Frustrado, larga a pasta em cima da poltrona e sai da cabine. A porta de correr volta automaticamente, fechando. O corredor não é muito largo; o suficiente para duas pessoas passarem com um pouco de aperto. Ele bate na cabine em frente à sua. Nada. Sem resposta. Tenta abri-la. Trancada. Ele olha para os dois lados. Ele está no meio de algum vagão. Acima de sua cabine há uma placa oval de cobre. Há um número ali. Ele força a vista. Memoriza o número. 
        Segue em frente pelo corredor, testando todas as cabines, todas vazias e trancadas. Algumas têm suas luzes interiores acesas, mas ninguém responde. Ele continua em frente. As luzes do vagão não parecem estar funcionando muito bem. Algumas estão apagadas, outras piscam esporadicamente. Há como que uma neblina pairando no interior do vagão. Ele não consegue enxergar o fim deste, está escuro e frio. Os únicos sons que chegam aos seus ouvidos são o da chuva tamborilando no trem e o do sacolejar deste sobre os trilhos. Ele segue até chegar ao fim do vagão, sem ter encontrado ninguém no caminho. Há uma porta com um pequeno vidro quadrado. O vidro está embaçado. Como as janelas de sua cabine. Ele segura a manga do casaco e com o punho limpa o vidro, encostando a mão em concha para enxergar melhor através dele. Existe outro vagão atrelado ao seu. Ele testa a porta, esperando estar trancada como as outras, mas está aberta. A porta se abre para dentro, deixando a chuva entrar e fustigando seu rosto. Ele se apoia no portal e abre a porta do vagão adjacente. Esta se abre, igualmente para dentro. Com um salto, ele aterrissa no vagão da frente, que se encontra tão nevoento quanto o que acabou de deixar. Ele caminha com cautela. 
        Isso está muito estranho. Ninguém. Seria ele o único passageiro daquele trem? Para onde estava indo afinal? Se ao menos ele se lembrasse! A lâmpada pisca sobre sua cabeça, gerando um reflexo na placa que indica o número da cabine, chamando sua atenção. Ele olha para a placa. 1408. Impossível! Aquele era o número da sua cabine. Ele olha para trás, confuso. Tinha mudado de vagão, isso era certo. A luz dentro da cabine está acesa. Ele vê o tom sépia através do vidro borrado. Passam-se alguns segundos em que ele simplesmente encara a porta, indeciso. Então escancara-a de uma vez. Ela corre para o lado, bate na extremidade e volta. Ele a segura com a mão. Vazia. A cabine está vazia. Ele contempla seu rosto no reflexo do vidro da janela. Seus cabelos desgrenhados e o rosto barbado. Sabe que aquele é seu rosto, mas não lembrava que ele fosse assim. 
        Adentra a cabine. A pasta continua jogada em cima do assento. Ele a pega novamente. Analisa o fecho. Força-o um pouco e a pasta se abre. Mais hesitação. Finalmente decide por vasculhar o conteúdo. Dentro há algumas folhas de papel velhas e corroídas pelo tempo nas bordas. Há algo escrito nelas. Símbolos organizados em linhas paralelas. Padrões de cinco linhas. Ele reconhece aqueles padrões, mas não sabe dizer o que são. Suspira. O que está havendo com sua mente? Apóia as folhas no colo e fica olhando para a primeira delas. Seus dedos tamborilam sobre a perna impacientes. 
        Não...
        Não é impaciência. 
        É um movimento coordenado... ele reconhece os símbolos. Aquilo é uma partitura! Uma melodia.                
Ele se lembra. 
Cantarola baixo. Sim. Lembra-se. 
Alguém cantando aquela música pra ele...? 
A lembrança vem acompanhada de um sentimento bom. Conforto. Ele sorri. Olha para a pasta novamente. Será que há algo mais ali dentro? Ele vasculha. Vira de cabeça para baixo. Algo cai em sua mão. Um colar. Um fino pingente de vidro em uma corrente de prata. Translúcido e brilhante. É como se o pingente tivesse sua própria luz, se é que isso é possível. Talvez ele só esteja refletindo a luz pálida e amarelada... Há algo sobre aquele pingente. Algo que ele não se lembra, mas também lhe trás conforto. Ele abre o fecho e pendura o colar no pescoço. Recosta-se na poltrona e fecha os olhos. 
Neste momento, o trem pára com um solavanco. 
Ele se curva na poltrona e olha para fora. Está escuro demais para se enxergar algo. Ele se levanta e sai pela porta, assim que a cruza se lembra da pasta, volta, fecha-a e sai novamente; seja lá o que fosse que ele achara na pasta, pertencia a ele. 
        Ao desembarcar na plataforma coberta pela fumaça da locomotiva e pela nevoa da noite ele não sabe exatamente o que fazer; não há placas ou sinais de identificação nos pilares. É tudo muito limpo, mas há ali um ar de abandono, como se ninguém passasse por ali há muito, muito tempo. Ele se vira para o outro lado e caminha até a borda. Há outro trilho ali por onde a locomotiva provavelmente faria o caminho inverso àquele por onde ele viera. O trem à suas costas apita e começa a se mover. Ele se vira e observa-o partir. O dia começa a clarear em uma manhã cinza e nevoenta. O céu passa do negro da noite a um cinza-chumbo. Ele percebe que não chove mais, mas vários flocos de neve flutuam calmamente até tocarem o chão e sumirem em um mar branco. Ele caminha ao longo da plataforma e encontra uma escada para descer, entre os dois trilhos. Sem muita certeza, segue caminhando e cruza a linha por onde viera seu trem. Há uma floresta ao longe, ele segue em sua direção. Talvez haja uma vila ou povoado onde ele possa pedir informações. 
        Ele divisa uma figura entre as árvores. Isso o anima. Finalmente uma alma viva naquele lugar, naquele sonho estranho. Ele aperta o passo em direção à figura ao longe. Aos poucos consegue discernir melhor o contorno e logo, as feições. Uma mulher. Vestida de branco, com longos cabelos negros que cacheiam suavemente às suas costas. Seu vestido longo arrasta as pontas no chão, mesclando a mulher ao ambiente gelado enquanto ela se move calmamente pela linha do horizonte. 
Ele estaca por um momento. 
Pensou ter visto asas às suas costas, mas eram somente galhos de algumas árvores secas atrás dela que causaram uma estranha ilusão de ótica... 
Ou talvez não fosse? 
Mesmo assim ele decide seguir em frente. 
Conforme se aproxima, percebe que a mulher está descalça sobre a neve. Caminhando calmamente em uma linha reta, seguindo para a esquerda dele, ao visto, sem tê-lo notado. Ele aperta o passo e, quando percebe, está correndo em direção à misteriosa mulher de branco. Quando está quase alcançando, ela finalmente o nota. 
E olha para ele. 
Seus olhos são de um azul muito suave, com um olhar ao mesmo tempo tenro e gélido. Seus lábios rosados não lhe traem nenhum sentimento. Sua pele é muito clara, contrastando com o cabelo negro, enfeitado por pequenas flores e flocos de neve, como estrelas na noite escura. 
Ele estaca, sem saber o que dizer agora que finalmente alcançou-a. 
Ela olha para ele por mais alguns instantes e estende-lhe a mão. 
Há longas fitas brancas amarradas em seus pulsos, descendo entrelaçadas até as mãos, as pontas caindo soltas e esvoaçando ao vento. Ele olha para a mão estendida e em seguida para seus olhos. 
Os longos cabelos dançam ao vento, jogando vários fios para o rosto da garota, velando seus grandes olhos azuis.
Ela sorri. 
E ele compreende. Tudo.
Não há mais incerteza em seu olhar ou em seus movimentos, ele pega a mão que ela lhe oferecera e juntos eles seguem pela floresta coberta de neve em meio ao dia que amanhece, e logo ele ouve, ao longe, o rugido do mar quebrando na costa.




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